De 2019 a 2021, mais de 200 mil pessoas desapareceram no Brasil, o que dá uma média de 183 desaparecimentos por dia. Os dados são do estudo Mapa dos Desaparecidos no Brasil, divulgado hoje (22) pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Os números, no entanto, podem ser ainda maiores. Isso porque o Brasil não conta hoje com um cadastro nacional para contabilizar esses casos. “Esse é um número muito elevado e, quando a gente verifica, por exemplo, as taxas de reencontro de pessoas produzidas pelas polícias, elas são muito menores. Ou seja, a gente nem consegue hoje dimensionar a quantidade de pessoas que efetivamente estão desaparecidas no Brasil”, disse Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista nesta sexta-feira (22).
Durante esse período, 112.246 pessoas foram localizadas. O número parece alto, no entanto, segundo Samira, é importante destacar que as pessoas que foram localizadas nesse período não necessariamente desapareceram entre os anos de 2019 e 2021.
“No último ano, tivemos um total de 34 mil pessoas localizadas, uma taxa de 16,6%. Mas, veja, desaparece quase o dobro [de pessoas] todo ano. E temos mais um problema nessa estatística: quando a gente olha o número de pessoas localizadas, precisamos ter a clareza de que essa pessoa não necessariamente desapareceu naquele ano. Então, não podemos fazer uma conta em relação ao total de pessoas desaparecidas naquele ano e o total de pessoas localizadas porque essas pessoas localizadas podem estar perdidas há mais de dez anos”, destacou ela.
Perfil dos desaparecidos
Do total dos desaparecimentos nos anos de 2019 e 2021, quase 30% foram crianças e adolescentes entre 12 e 17 anos.
“Esse é o grupo populacional que mais desaparece no Brasil. E isso pode estar vinculado a uma multiplicidade de fenômenos porque engloba desde aquele adolescente que é vítima de algum tipo de crime e acaba sequestrado, vítima de trabalho escravo ou exploração sexual até aqueles casos de desaparecimentos voluntários em que o adolescente sai de casa por maus-tratos ou desavenças familiares.”
O estudo também revelou que a maioria dos desaparecidos são do sexo masculino (62,8% dos casos) e negros (54,3% do total). “Quando a gente olha para o perfil do desaparecido e vemos que são majoritariamente jovens, pretos e pardos, do sexo masculino, muitos dos quais em situação de vulnerabilidade, é mais um fator que nos leva a ter que priorizar esses casos porque isso pode incluir componentes criminais como homicídios, sequestros e tentativas de homicídios. E, muitas vezes, a gente só vai encontrar essas pessoas depois em valas clandestinas ou em cemitérios clandestinos”, disse a diretora do Fórum.
Outro dado interessante é que, durante a pandemia de covid-19, o número de pessoas desaparecidas caiu 22,3% em 2021 na comparação com 2019. “Na pandemia, todos os estados apresentaram redução no número de pessoas desaparecidas. Mas teve uma faixa etária que mostrou crescimento [nesse período] que foi a faixa etária entre 40 e 49 anos, especialmente homens”, ressaltou Samira.
Segundo ela, isso pode estar relacionado a outro fenômeno: a população em situação de rua. “Uma das hipóteses que a gente traz para o crescimento entre pessoas de 40 e 49 anos é que aumentou o desemprego, caiu a renda e muita gente ficou em situação de rua. A gente teve um crescimento significativo da população em situação de rua no Brasil nesse período e é comum que pessoas que perdem emprego e renda, fiquem envergonhadas e, enfim, não tendo para quem pedir ajuda, acabem indo para a rua”, ressaltou ela.
Política nacional
Segundo o Mapa dos Desaparecidos, o estudo demonstrou que dois graves problemas dificultam ainda mais o trabalho de localização de pessoas no Brasil. O primeiro deles é a falta de um banco de dados unificado que integre os estados e as informações sobre as pessoas que desaparecem no país.
“O que a gente percebe pelas estatísticas disponíveis é que todo ano o número de pessoas desaparecidas é muito mais elevado do que o número de pessoas localizadas. E como não temos um banco nacional que consolide essas informações, na prática, não conseguimos dimensionar de fato quantas pessoas estão desaparecidas hoje no Brasil.”
Para Samira, outra dificuldade é que o desaparecimento no Brasil não é um crime: “o desaparecido é toda pessoa cujo paradeiro não é conhecido, tenha sido de forma voluntária ou não esse desaparecimento. O que acontece é que essa tipificação é muito ampla e não é um tipo penal, ou seja, o desaparecimento não é um crime. Como o desaparecimento não é um crime, não necessariamente vai haver o registro de um boletim de ocorrência que vai levar a uma investigação ou instauração de um inquérito. Então isso vai depender muito da prioridade dada por aquela delegacia”.
Sem políticas públicas e um cadastro nacional, e torcendo para que um delegado investigue determinado caso, o resultado é que muitos pais acabam em uma longa busca por seus filhos desaparecidos. É o caso de Ivanise Esperidião da Silva, que fundou o movimento Mães da Sé, após sua filha de 13 anos ter desaparecido a poucos metros de sua casa, em 1995.
Em entrevista à TV Brasil, Ivanise disse que continua à espera da localização de sua filha. “Isso é lidar com uma dor e uma busca solitária. Te falo com a experiência de uma mãe que há 27 anos procura uma resposta ao que aconteceu com minha filha e até hoje não teve resposta. São mais de 12 mil mães que passaram ao longo da minha vida no movimento e todas elas têm a mesma sensação de descaso, de abandono e de invisibilidade. O desaparecimento – na minha opinião como mãe e como militante de uma causa – deveria ser tratado como um problema de segurança pública. Mas ele não é. Nossos filhos fazem apenas parte de uma estatística: são apenas um número”, lamentou ela.
Lei Nacional
Em 2019, o governo federal sancionou a Lei da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas. Essa lei previa a criação de um cadastro nacional que ainda não está em funcionamento.
“Em 2019 a gente teve a sanção de uma lei que cria a Política Nacional de Busca e Localização de Pessoas Desaparecidas e que determina a criação de um cadastro de pessoas desaparecidas. No entanto, não tivemos destaque orçamentário para essa política. Embora a política tenha sido sancionada em 2019, ela não teve nenhum recurso orçamentário entre 2019 e 2022. Na prática, se você não tem recursos financeiros para implementar a política, nada aconteceu”, disse Samira.
Para Ivanise, se o cadastro estivesse em funcionamento, teria ajudado muitas famílias. “Mas nem isso nós temos”, criticou ela. Ela também defendeu a tipificação do desaparecimento.
“Pelo fato de o desaparecimento, juridicamente falando, não ser considerado um crime, o problema é tratado com descaso, com invisibilidade. As pessoas não enxergam os crimes que acontecem por trás de um desaparecimento. E assim vamos vivendo à mercê da própria sorte porque não temos, até hoje, políticas públicas voltada para a causa do desaparecimento.”
“Minha filha era uma adolescente de 13 anos. Então o Estado me deve essa resposta. A Constituição é bem clara quando diz que a criança e o adolescente é responsabilidade do Estado, da sociedade e da família. Mas quando acontece um fato desse é como se a família fosse a única responsável. O Estado, por sua vez, é ausente, negligente e omisso. E a sociedade prefere olhar para a gente com o olhar de piedade. Nós não queremos isso. Queremos empatia com a nossa causa”, completou Ivanise
Procurado, o Ministério da Justiça e Segurança Pública não comentou o estudo, nem se manifestou sobre a criação do cadastro unificado, até a publicação do texto.